Em primeiro lugar, a informação necessária: estou adequando minha rotina para dar mais espaço ao Mestrado em Direito na USP, que vai começar a demandar muito em 2025. A intenção é manter essa carta ao vazio com periodicidade semanal, e para tentar fazer com que isso aconteça, ela passa a sair de segunda, com os comentários aleatórios sobre assuntos que chamaram a minha atenção na semana que passou.
E claro que o assunto da semana passada foi o indiciamento de Bolsonaro e o relatório da PF sobre o plano mirabolante de assassinar os eleitos Lula, Alckmin e outro indivíduo não identificado ainda, o “Juca” (Dirceu? Dino? Janja?)
Como já é de praxe, não quero chover no molhado, repetindo o que você já leu por aí. Quero tentar enxergar um pouco mais, ainda que veja errado de vez em quando.
Nesse assunto, me preocupou a seguinte questão: quando o Brasil se tornou fascista?
A melhor resposta a que cheguei é: quando não foi?
Nossa democracia foi inaugurada em 1988, com a Constituição mais legítima que já tivemos (qualquer dia escrevo sobre ela). São 36 anos só.
Nosso país foi fundado como um empreendimento comercial. Sergio Buarque de Hollanda explica isso melhor que eu jamais poderia, e por isso remeto o raro leitor a ele. E talvez o retrato perfeito disso seja o bandeirismo, os bandidos paulistas entrando sertão adentro para escravizar indígenas, deixando um rastro de sangue, genocídio, estupro e exploração.
É interessante como nós, os “herdeiros” da sociedade de Piratininga, promovemos uma vergonhosa apologia aos bandeirantes, construindo o mito de que eles eram os pais fundadores não só de SP como da nacionalidade brasileira. Dos anos de 1890 a 1930 vários artistas e intelectuais trabalharam na construção dessa imagem.
Aliás, no início do século XX no Brasil havia uma febre de necessidade de construção de uma identidade nacional. O Brasil estava profundamente ligado às teorias eugenistas de Francis Galton, inclusive sendo o primeiro país a fundar uma Sociedade Eugenista, sediada (como não poderia deixar de ser) em São Paulo.
Ao final do século XIX, após a abolição da escravatura e início do século XX, já no período republicano, as ideias do evolucionismo social deturpavam as formulações de Charles Darwin e procuravam conotar o termo “evolução” a partir da ideia de melhoria e não pré-adaptabilidade. O médico Francis Galton, primo de Darwin, teria sido o responsável por essa extensão de sentido racista e eugenista. Mas o maior propagador das ideias do evolucionismo social teria sido Herbert Spencer, que inaugura toda uma forma de pensar focada nas características físicas, psicológicas e “raciais” como forma de hierarquizar as pessoas e seus comportamentos, separados entre selvagens e civilizados.
Outra teoria que teve uma recepção entusiasmada no País foi o positivismo criminológico de Cesare Lambroso, que procurava “explicar” comportamentos criminosos através de medidas de caixa craniana e outras características físicas. “Coincidentemente”, a maioria das características dos ditos “criminosos” descreviam pessoas miscigenadas, pretas, indígenas. Os brancos seriam “naturalmente” menos propensos ao crime.
Todas essas teorias, no entanto, enfrentaram o nosso “filtro antropofágico”: viraram outra coisa por aqui. Havia um racha no eugenismo brasileiro. De um lado aqueles que, influenciados pela ideia de pureza da raça, queriam eliminar toda descendência indígena e africana, promovendo higienismo sanitarista e incentivando a imigração europeia. De outro, crescia um movimento “modernista” que concebida a mestiçagem de forma positiva, querendo definir a "raça brasileira" a partir dela e construir uma identidade única.
Esses últimos contaram com intelectuais como Alfredo Ellis Jr e Cassiano Ricardo, que se dedicaram a reavivar a imagem heróica do bandeirante e valorizar a mestiçagem, inclusive concebendo a existência de negros e índios como fadados ao desaparecimento em função do "mestiço cósmico" que reuniria as virtudes das três raças que compuseram a nacionalidade brasileira. Junto com Plínio Salgado e Menotti Del Pichia, fundaram o movimento Verdamarelo de cunho ultranacionalista, artístico e intelectual. Mais tarde Plínio iria fundar o Integralismo com base no fascismo de Mussolini e nas ideias ufanistas de resgate do bandeirismo.
Esse movimento modernista Verdamarelo de Del Pichia, Cassiano Ricardo, Ellis Jr e Plinio Salgado e sua busca insana de estabelecer uma raça brasileira com base no bandeirismo, se opunha frontalmente ao modernismo Pau Brasil de Oswald e Mario de Andrade, que mais tarde lançariam o Manifesto Antropofágico na Semana de 22. Enquanto os verdamarelos buscavam a síntese racial brasileira com base numa idealização essencialista da mestiçagem, os antropofágicos valorizavam a diversidade e a diferença, mesmo que estivessem também preocupados com a identidade nacional.
Passamos boa parte do início do século XX buscando construir o nosso “mito fundador”, e ele era racializado, militarizado e opressor.
Não é por acaso, inclusive, que a imigração europeia, tornada possível pela acumulação primitiva de capital que os pretos africanos proporcionaram aos brancos portugueses pos 300 anos, foi muito forte nesse período. A promoção da migração foi um esforço deliberado de embranquecimento da nossa sociedade.
Do lado político e jurídico, sempre fomos simpatizantes das ideias de tutela: já na constituição de 1824, tivemos o famoso poder moderador imperial, que as Forças Armadas depois tentam trazer para si, inclusive arrolando-se o papel de construtora da Nação, tendo surgido quase 200 anos antes do próprio Brasil.
Qualquer manifestação popular brasileira, ao contrário, era enterrada: aprendemos na escola que a CLT nos foi “dada” por Getúlio Vargas, esquecendo inclusive do nome da lei: Consolidação. Consolidação é junção de coisas pré-existentes. No caso da CLT, de leis que surgiram após greves gerais, quebra-quebras, muita pressão anarquista e sindicalista, quando ser sindicalizado era proibido.
Aliás, esse é um orgulho que eu tenho: meu avô materno, operário das indústrias Matarazzo, era sindicalista quando isso era perigoso, e fazia greve quando isso era proibido. Eu tenho muito mais orgulho de ter tido um avô pobre, trabalhador e preocupado com os seus semelhantes do que teria de ter tido um avô “empreendedor” – apesar dele, depois de não conseguir mais emprego nenhum por conta de sua atuação política, ter montado um boteco para sobreviver.
Esse caldo de tutela, racismo, embranquecimento e culto à violência fez brotar o brasileiro doente de saudade de um tempo onde ele não era ameaçado por minoria alguma, onde os pobres conheciam “seus lugares”, onde havia “hierarquia”.
Esse é o caldo de cultura que leva um bando de incompetentes a montar um plano como o que nos foi apresentado pela Polícia Federal: o desconhecimento do que é uma República, em primeiro lugar. Um enorme desprezo para com conceitos concretos como povo e democracia.
A discussão do artigo 19 do Marco Civil da Internet
O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou na semana passada o julgamento da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que responsabiliza plataformas digitais por conteúdo de terceiros apenas se não removerem os conteúdos ilícitos após ordem judicial.
A legislação, de 2014, vem enfrentando prova de fogo nos últimos anos e claramente necessita de reforma, principalmente na questão da responsabilização das plataformas. Eu tenho experiência pessoal com isso, pois “coleciono” manifestações transfóbicas nas redes que frequento, para tentar tornar o entorno um pouco menos hostil para minha filha, uma mulher trans. E essa experiência me permite dizer que as redes estão “cantando e andando” para o que se posta nelas.
Voltando à legislação: defensores da constitucionalidade do artigo 19 apontam que ele protege o devido processo legal e impede censura arbitrária, enquanto críticos argumentam que empresas lucram com desinformação e não assumem responsabilidades preventivas, mesmo em casos que envolvem danos graves, como abuso infantil e incitação à violência.
O julgamento analisa a constitucionalidade do artigo frente à possibilidade de uma “interpretação conforme à Constituição”, para adaptar o artigo às novas demandas digitais, propondo exceções específicas em casos flagrantes de violações a direitos fundamentais, como conteúdos relacionados a terrorismo e pedofilia. Em situações menos evidentes, defende-se a remoção de conteúdos mediante notificação extrajudicial, evitando judicialização excessiva.
Especialistas alertam que modelos de negócios baseados em coleta de dados e micro segmentação de publicidade reforçam a necessidade de maior responsabilidade das plataformas, principalmente na proteção de crianças e adolescentes, conforme o artigo 227 da Constituição Federal.
Eu gosto da solução que apresenta quatro diretrizes para a regulamentação: responsabilidade imediata das plataformas em casos de violações flagrantes; ação baseada em notificação para violações menos claras; revisão humana em decisões de remoção de conteúdo; e maior transparência sobre moderação e uso de dados pessoais, respeitando a Lei Geral de Proteção de Dados.
O Marco Civil da Internet brasileiro, quando surgiu, foi tido como uma legislação avançadíssima, modelo mundial. A sina dos pioneiros é rever seus posicionamentos mais cedo, de modo que é importante acompanhar esse julgamento.
Minha nova banda favorita..
…que eu conheci esses dias.
Uma banda de moleques que faz um rock ótimo, de moleque. O rock ainda é relevante, e se renova sempre que um moleque empunha uma guitarra (ou um baixo, ou uma bateria…).
Vejam os franceses do Dynamite Shakers
(e eles são bons ao vivo também)