Porque Emilia Perez é um filme transfóbico e ofensivo
“Mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão” (Chimamanda Ngozi Adichie)
O filme é um amontoado de estereótipos extremamente ofensivos, reforçadores de preconceitos. Há uma questão, inclusive, que ofende pessoalmente, e essa eu deixei no final do texto.
Tentarei não dar spoilers e também não estou fazendo campanha para que não assistam ao filme. Estou chamando atenção para os pontos, os muitos pontos, extremamente problemáticos e reforçadores da transfonia que mesmo pessoas que se querem aliadas não conseguem ver.
A questão central do filme é a redenção de Manitas, que é um dos chefões do narcotráfico. Após a transição de gênero, Manitas assume a identidade de Emilia Pérez. E sua personalidade muda completamente.
Na primeira cena do filme aparecem três mariachis, seguidos por uma tomada noturna da Cidade do México na penumbra e gritos dos coletores de sucata. Quando amanhece, vemos uma pessoa sendo assassinada no meio de uma rua lotada enquanto ninguém esboça qualquer reação.
O filme conta a história de Emilia Perez/Manitas del Monte, um traficante violentíssimo que quer se valer de uma transição de gênero para deixar para trás uma vida de crimes e violência, com o auxilio da advogada Rita, A personagem da Zoe Saldana é apresentada como uma advogada bem sucedida, mas ela despacha em uma feira de rua, perto da barraca de peixe sabe? Ela leva o laptop pra usar o wi-fi e a impressora da feira. Claro. Não existem escritórios fora da civilização européia.
Muita gente diz que o filme tem que ser bom em si, que a narrativa tem que ficar de pé, não importa se levanta ou não bandeiras. Pois bem, as narrativas levadas a uma tela, ou a um papel, um gibi etc, são escolhas. E todas as escolhas são políticas, pois levam em conta seu lugar na sociedade, toda a sua bagagem cultural e intelectual e todos os seus preconceitos, mesmo aqueles que você julga não ter.
E como julgam não ter preconceitos os defensores desse filme! Não enxergam um palmo diante do nariz, o que não é de se espantar: não vivem e não conhecem a questão trans para além de uma pauta dita “progressista”. Creem-se aliados, quando estão apenas no começo da caminhada da educação para uma real compreensão da questão.
Vou deixar de lado a polêmica sobre o filme falar do México sem conhecer o México – afinal, isso é Hollywood e James Bond já foi de carro da Amazônia até as Cataratas do Iguaçu na mesma cena de perseguição de carro.
Mas das narrativas escolhidas sobre a questão trans e do porquê delas aprofundarem o preconceito em relação à comunidade que a minha filha caçula pertence eu vou falar. E quem quiser que continue lendo.
É claro que é positiva a escalação da atriz no papel principal. Representatividade importa, e muito. Mas é suficiente? E quando essa representatividade está por ali para validar ou legitimar escolhas (políticas) questionáveis?
E aqui já trato do principal problema do filme: a transição de gênero da personagem, que é, por falta de palavra melhor, binária.
O mundo trans é, em essência, não binário. Abandonar o raciocínio binário, que é eminentemente calcado no patriarcalismo, é uma chave de entendimento essencial para lidar com a comunidade trans.
E “Emília Perez” é uma ode carnavalesca ao binarismo: a oposição macho violento/mulher santa, macho/mulher trans operada está lá na sua cara, a todo momento. A remoção da genitália é um fetiche patriarcal, que foi muito bem tratado na obra de estudiosos como Paul Preciado. Será que é demais exigir o mínimo de estudo de um diretor de cinema?
Essa fantasia patriarcal dos opostos binários não condiz com a realidade trans: uma pessoa é trans desde sempre, desde o útero de sua mãe. Ela é a mesma pessoa, qualquer seja o seu nome, sua genitália, sua apresentação social. Não há mudança.
Não havendo mudança, só conseguimos entender a transição de Manitas em uma chave de disfarce, um processo que envolve outras duas questões que são preconceitos arraigados contra a comunidade: que se trata de uma “escolha”, e que não passa de um “fingimento”.
Esse é o preconceito clássico contra a população trans/travesti. Manuais de criminologia antigos inclusive ensinavam que o “crime” da pessoa trans é justamente o ato de enganar o outro, de provocar o erro, de fingir. E muitos estudiosos da condição trans trazem essa percepção de fingimento como cerne do ódio contra a população, principalmente por parte dos homens cis. Insistir na pessoa trans como arquétipo do fingidor é reforçar, e muito, esses preconceitos.
É reforçar também o corpo trans como o corpo da pessoa que não é confiável, do lobo Manitas na pele da ovelha Perez.
E aqui temos a estética exagerada do filme, que alguém já mencionou ser um desfile de escola de samba que não evolui: se tudo é exagerado, inclusive a busca de redenção de Perez/Manitas, e se o exagero é uma crítica, não seria Emília Perez uma crítica a ideias ditas “woke” que, na visão preconceituosa que vêm inclusive dos pretensos aliados, estão associando corpos trans com o “bem” e sua não aceitação com o “mal”?
Vamos falar agora da voz da personagem, “feminilizada” com o auxílio de IA. Ora, o que é isso senão uma afirmação de que a voz trans não tem lugar no mundo? Ou há a voz grave e ameaçadora de Manitas, ou há a voz artificial de Emilia. Novamente, o binarismo.
E aqui vou apenas contar uma coisa: há relatos de inúmeras crianças e adolescentes trans que passam ANOS sem abrir a boca por ODIAREM a sua voz, uma condição que leva muitas pessoas trans a ideações de suicídio. E aí o filme “representativo” joga na cara das pessoas que a voz delas não serve?
E chegamos à cena de “Vaginoplastia”: todos os números musicais são espalhafatosos e fora de esquadro (assim como as pessoas trans, perguntam-se os patriarcalistas). Num dos números, uma equipe inteira do hospital de Bangkok canta e dança enquanto explica os vários procedimentos cirúrgicos: “Mamoplastia, vaginoplastia, rinoplastia, laringoplastia…” – o pulso ainda pulsa, e vergonha alheia define.
Mas “Vaginoplastia”, em sua letra, mostra a identidade trans como derivada da identidade cis-masculina, na letra da música!!
A man to woman
A woman to man
A man to woman
A woman to man
A man to woman (vaginoplasty makes this macho stand)
E finalmente, chegamos à narrativa do filme que me ofende pessoalmente, porque preconceituosa e mentirosa: a transição como Calvário. Emilia sofre dores, inadequação, dúvidas. A transição como dor, como expiação, como processo sofrido. O calvário, claro, é uma alegria para a expiação do pecado de ser trans.
NADA MAIS DISTANTE DA REALIDADE. Qualquer pai ou mãe de pessoa trans (que não seja um canalha maluco que rejeita sua cria), eu incluso, testemunhará que a transição é o contrário de tudo isso: é recuperar seu lugar no mundo, entender-se a si mesmo, abrir oportunidades de felicidade. É voltar a cantar, a experiência pessoal que eu tive com minha filha.
Minha filha era uma criança feliz. Cantava a plenos pulmões onde quer que estivesse, mas principalmente no carro, na sua cadeirinha. Adolescente, começando a sofrer o que iria anos depois identificar como disforia, não abria mais a boca. Não cantava. A criança sorridente e cantante virou uma adolescente ensimesmada, soturna.
Iniciada a transição, tendo entendido quem era, encontrado o seu lugar, a minha filha feliz voltou. Há alguns meses, eu, ela e a mãe no carro, ouvimos a nossa filha cantar. Feliz. Ela cantando no banco de trás e nós chorando baixinho, de alegria, na frente.
Transição, encontrar-se, é retomar as chances de ser feliz. Não é um calvário, Monsieur Audiard. Não é fingimento. Não é fuga.
À merda todos os transfóbicos e aliados, mesmo os que se passam por inocentes.
Que texto, meu caro! Esclarecedor, no mínimo. Sensacional.