Há tempos pretendia escrever alguma coisa sobre Inteligência Artificial. Como todo assunto sobre o qual todos querem falar, ele me aborrece, certamente porque 90% do que falam sobre o assunto é uma grande bobagem.
Sempre que leio “revolução”, “a vida não será como antes”, “vai mudar tudo”, eu seguro o riso.
Porque o passo da História é feito de idas e vindas, muito atrito, muita fricção.
Além disso, obviamente um “assunto novo” é sempre uma oportunidade de pessoas ganharem destaque: a igualdade de status de “autoridade” sobre aquele assunto está colocada de saída.
No meu cantinho, no Direito, eu vou me valer desse campo nivelado para vaticinar: não muda nada. Um pouco mais de automação, alguns advogados com uma formação mais deficiente perderão mercado e as posições de entrada na carreira ficarão prejudicadas. Mas a essência do que é ser um jurista, seja advogado, seja magistrado, seja professor, não muda.
E por que não muda? E por que eu sou categórico sobre isso?
Por um motivo simples: não é uma questão de tecnologia. É uma questão do que uma “inteligência artificial” consegue ou não fazer.
Direito não é uma técnica, não é uma tecnologia, não é ciência. De modo muito prático, Direito é linguagem. E aqui peço licença para aprofundar um pouco.
As situações das quais o Direito cuida envolvem contextos complexos e situacionais, onde uma mesma palavra ou expressão pode ter significados diferentes dependendo do caso, do contexto ou das intenções das partes.
Isso é um problema para IA, que geralmente trata linguagem como sequências de palavras ou padrões estatísticos. Sem o entendimento profundo do "jogo de linguagem" específico da lei, ou das situações concretas, a IA tem dificuldade em interpretar nuances jurídicas de maneira precisa, o que leva a problemas como respostas incorretas ou "alucinações".
Um exemplo bobo: “proibido veículos no parque”. Certamente carros não podem entrar no parque. As bicicletas podem? Os skates? Um hoverboard ainda não inventado? Em que medida esses objetos são veículos?
Questões desse tipo foram bastante estudadas por um filósofo que tem um trabalho fascinante (e pinta de rockstar): Ludwig Wittgenstein. Em sua super conhecida obra “Investigações Filosóficas”, Wittgenstein argumenta que o significado de uma palavra depende de seu uso no "jogo de linguagem" em que está inserida, rejeitando a ideia de que palavras têm significados fixos e independentes: o significado de uma palavra emerge através da prática social e do contexto.
No nosso exemplo bobo: imagine que skates sejam usados basicamente por crianças ou por praticantes assíduos da modalidade esportiva. Nesse caso, para efeitos da lei que proíbe veículos no parque, podemos dizer que skates são brinquedos ou material esportivo? Parece razoável que sim.
Se as palavras têm seu significado socialmente definidos, e se considerarmos que uma regra, em sentido amplo, é um encadeamento de palavras, uma conclusão razoável é que entender e seguir uma regra não é uma questão de aplicar automaticamente um conjunto de instruções rígidas, mas passa por um processo de compreensão do contexto em que ela se aplica e interpretar sua aplicação de forma flexível.
A IA jurídica enfrenta problemas exatamente nesse ponto: a aplicação de regras jurídicas não é simplesmente uma questão de processar dados ou seguir uma lógica fixa, mas de entender em que momento um skate deixa de ser um brinquedo e se torna um veículo.
Ao apresentar soluções para uma questão, uma IA abre um leque de possibilidades. Acontece que, a partir daí, o caminho é um só: o aprofundamento. Na enésima rodada de refinamento, a IA lhe deu uma resposta extremamente específica, mas que não admite que você pense: mas e se, nesse caso, o skate não for um veículo, mas uma arma? Esse raciocínio, que reputamos bobo, é de uma sofisticação que a máquina nunca vai conseguir emular.
E chegamos, enfim, na questão mais importante, e mais básica: uma IA deve ser “treinada”, o que implica que ela só consegue trabalhar com algo que já aconteceu. Em direito, nem tudo já ocorreu, e até por isso que a legislação tem o que se chama de “textura aberta”, sujeita a interpretações.
Trazendo o exemplo de uma discussão atual: o banimento de pessoas das redes sociais.
O argumento padrão (e errado) é o cerceamento da liberdade de expressão. Um argumento um pouco mais sofisticado é o que diz que um juiz tem poder geral de cautela e pode impor medidas cautelares não previstas em lei, como tirar acesso a redes sociais. É um argumento bem discutível, principalmente no âmbito do Direito Penal, que deve seguir estritamente o princípio da legalidade: se não há previsão na lei, não existe.
Não há o que fazer? Claro que há. O artigo 319, inciso II do Código de Processo Penal diz que pessoas podem sofrer a medida cautelar de proibição de “(...) acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações”.
Veja o que a lei diz, mas principalmente o que ela não diz: a lei não fala que os “determinados lugares” são lugares físicos. Eles podem muito bem ser lugares virtuais como...redes sociais!
Sabe por que a IA nunca ia sugerir essa solução? Porque esse artigo era usado, basicamente, contra torcedores em estádio de futebol ou brigões de bar. E de quem é esse argumento? Eu o conheci por meio do professor e juiz Guilherme Madeira. Não é um raciocínio estatístico, baseado em história. É um exercício de linguagem, de interpretação, impossível em bases matemáticas.
Esse raciocínio a máquina é e sempre vai ser incapaz de fazer. Claro que a IA certamente vai obrigar os juristas a serem melhores. Mas jamais vai substituir um bom jurista.
Uma porcaria ruim…
…todo mundo falando desse seriado da Netflix, mas uma novela das sete das bem chulé é muito melhor que essa nova série da Netflix.
Pelo menos o nome é apropriadíssimo: Ninguém Quer.
…e uma porcaria boa!
Johnny Cash é inimitável, e você não melhora o que é perfeito. Tentar, portanto, é admitir que cai sair porcaria.
Mas de vez em quando sai uma porcaria melhorzinha.
e, claro, o original:
Por hoje…é só.
Acho temerário dizer que a IA "não impacta" em um mundo em que as soluções são cada vez mais rápidas e superficiais, e o que importa é o custo em praticamente tudo e não a qualidade. Onde querem substituir tudo em nome do lucro e não para liberar o ser humano para atividades melhores.
De todo modo é sempre um prazer ler tuas ideias e dicas. Um privilégio eu diria.
Um abraço!
Adorei. Não sou do Direitos, mas tenho percepção sobre impactos da IA no ramo que atuo (Comunicação).
Em tempo: Ninguém Quer é uma merda. Tanta gente elogiando, e não consegui passar do primeiro episódio.